Contos e Causos

Espaço dedicado a contos e causos que engoli, digeri, reinventando-os e me reinventando no processo

De um beijo nasceu uma história...

A Belo Horizonte do final dos anos quarenta ainda cheirava Gás Lacrimogêneo que a polícia jogava nos “queremistas” e a Dama da Noite que as famílias cultivavam nas portas das casas. Seu status de urbs moderna, tal qual uma Paris tropical, com ruas e avenidas traçadas a esquadro e compasso, disputava espaço com a tradição e provincianismo dos valores da mineiridade. Bondes e trólebus se mesclavam nas arbóreas paisagens, com cavalos e carros de boi sob a sombra da serra do Curral.
Neste cenário de um bucolismo sui generis, as tradicionais famílias mineiras vão pouco a pouco chegando do interior para povoar a novíssima capital. Barbacena, São João Del Rei, Ouro Preto, Tiradentes, tantas cidades históricas enviaram seus filhos para ocupar novas ladeiras, outras alterosas.
Uma dessas famílias, nem a maior nem a menor, os Pires de Morais da acolhedora Itapecerica, no Campo das Vertentes, mandou suas duas filhas para ganharem a vida na cidade grande. Era finda a guerra e com ela o Estado Novo. Outros tempos possibilitavam novas oportunidades. Quem sabe avançar nos estudos uma vez que as mulheres começavam a conquistar mais espaços na sociedade, ou quem sabe, conseguir um bom casamento nos footings na Praça da Liberdade ou nas ruas do bairro Floresta?
Sair do interior, “das barras da saia da mãe”, como se costumava dizer naquele tempo, tornava aquelas meninas jovens mulheres, com responsabilidades maiores do que seus longos vestidos.
Foi assim que Marta e Mercês chegaram a Belo Horizonte. A Praça da Estação repleta de cavalheiros de terno, gravatas finas e bigodes escovados revelava um mundo muito diferente de sua terra natal. Sotaques, modos e costumes diversos traduziam a efervescência daquela cidade que atraia jovens aventureiros e famílias consolidadas. Belo Horizonte era a capital do mundo, ainda que um mundo muito pequeno e pacato, numa palavra: ingênuo.
Ingênuas eram também as duas moçoilas bem comportadas que vieram passar uma temporada na casa do tio, barbeiro e dramaturgo nas horas vagas. Misto de Fígaro de Sevilha e Shakespeare, Joviano Pires B. de Morais fazia de tudo para que as sobrinhas se sentissem em casa, desde lhes oferecer um quarto como de lhes cobrar ajuda nas tarefas domésticas. Enquanto Mercês foi terminar seus estudos e se tornou normalista, Marta foi trabalhar em uma das várias fabriquetas que surgiam e ajudavam a empregar aquela massa humana que não parava de chegar. Toda a sua renda era destinada a ajudar nas despesas da casa e quando sobrava, compravam retalhos para detalhes dos vestidos.
Aconteceu que naqueles dias, um jovem recém chegado de Conselheiro Lafaiete, vindo a capital para fazer uns trocados, ganhar a vida e nas horas vagas, bailar no famoso Montanhês Dancing, fazia um bico distribuindo combustível nas fabriquetas além da Avenida do Contorno. Ele começava a ser conhecido na cidade por ser tocador de gaita nas quermesses e folguedos que semanalmente davam graças nas inúmeras praças de Belo Horizonte.
Num desses dias de trabalho árduo, dirigindo uma caminhoneta velha, talvez uma das primeiras que cruzavam as alamedas belorizontinas, o jovem Willer Siqueira se dirigiu a fabrica em que trabalhava Marta. Ele de calça social, camisa com mangas arregaçadas, boina e suspensórios, descarregava o carro quando viu o que julgou ser a criatura mais bonita de todo o pequeno mundo que conhecia. Marta tinha os cabelos cor de mel e os olhos mais verdes que esmeralda além de uma pele clara acentuada pelo pó de arroz que usava. Sua saia rodada balançava uniformemente conforme seus movimentos.
Passaram a trocar palavras e logo uma amizade nasceu. Willer deixou de lado os cartõezinhos perfurados das danças com as mulheres de “vida fácil” no Montanhês pelos passeios de mãos dadas e as conversas de alpendre com Marta, sob a supervisão atenta de Mercês. O Tio Joviano nem aprovava nem desaprovava o namorico da sobrinha, desde que isso não lhe atrapalhasse nos serviços domésticos nem lhe impedisse de contribuir no orçamento do lar.
Certo dia, após sair do trabalho, Marta estava sentada com uma roda de amigas numa das várias praças da cidade quando Willer veio lhe visitar. Ela gentilmente pediu para que ele fosse lhe buscar balas de maçã da Lalka. Para agradar, Willer mais do que depressa correu para buscar as balas tão apreciadas pela juventude mineira daquele tempo. Esbaforido, Willer chegou com o pacote de balas e como prêmio, pediu um copo de água. Marta deu um sorriso tímido e trouxe a água para o rapazote. Ele começou a beber lentamente com um olhar malicioso, e antes que ela pudesse se virar ele lhe roubou um beijo.
(É preciso considerar, que naquela Belo Horizonte de antes dos rebeldes anos de 1960 e até mesmo antes dos dourados anos cinqüenta, um beijo significava muito mais do que simplesmente um trocar de lábios. Simbolizava uma afeição tão grande quanto entregar uma aliança. Aliás, o beijo significava essa aliança entre duas pessoas. Para Marta, entretanto, um beijo era um pouco mais do que isso).
Horrorizada com tal atitude, Marta desfaleceu brevemente, e antes de ser socorrida, disparou para dentro de casa. Willer (e as amigas da moça) ficou sem entender o que aconteceu. Conhecendo as lendas que giravam em torno de Joviano e de suas navalhas afiadas, preferiu não bater e perguntar o que tinha acontecido deixando a curiosidade e o espanto para serem curados depois. Não sabia ele, que tal zelo poderia lhe ter custado muita coisa.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Willer tomava café forte, com queijo minas e goiabada cascão com seus irmãos quando uma comitiva veio bater em sua casa. Seu pai, estucador da Imprensa Oficial, do Colégio Pedro II e de diversas obras públicas de estilo eclético que embelezavam a capital, enérgico como poucos, foi receber o delegado de Jogos e Costumes, o barbeiro Joviano e a jovem Mercês na porta.
Acolhidos na sala de estar, principal aposento dos sobrados de Belo Horizonte, o delegado de Jogos e Costumes iniciou a conversa dizendo que uma imoralidade terrível havia se abatido sobre aquelas famílias. Willer havia engravidado Marta sem o consentimento desta. O pai de Willer somente não mandou o filho buscar uma tira de borracha na Mecânica para lhe dar uma surra por que queria entender melhor a história. Antes que Willer pudesse se defender, Mercês confirmou o ocorrido reafirmando a versão da irmã de que esta havia sido engravidada por Willer de forma inesperada. O pai, furioso com a irresponsabilidade do filho de ter engravidado uma moça de família perguntou ao delegado se o casamento poderia ser realizado de forma a chamar menos atenção possível e não envergonhar a tão boa família da moça, que certamente se entristeceria muito se recebesse tal notícia pelas colunas sociais. Segundo o delegado, tudo já estava nos conformes e ele já havia tomado as devidas providências e bastava chamar Marta para assinar os papeis para efetivar o casório.
O sino da igreja já havia batido a hora da oração quando a trupe se dirigiu para a casa de Joviano para buscar Marta. Willer cabisbaixo sem entender como havia se metido naquela armação toda fugia do olhar decepcionado de seu pai. Marta já estava preparada quando a comitiva chegou. Mercês lhe lançou um olhar protetor, mas ao mesmo tempo de reprovação. Como tão pura moça do interior havia caído nas graças de um tocador de gaita boêmio conhecido do submundo da cidade? Como ela tinha acreditado que ele mudara e agora era um sujeito trabalhador e honrado? Ao chegar à delegacia, todos se assentaram como testemunhas. No momento em que Willer ia assinar o livro de registro, uma única frase de Marta durante todo o percurso mudou tudo: Que papelão Willer, tudo isso por causa de um beijo roubado...
Willer, com um olhar aliviado, mas ao mesmo tempo apaixonado por tal singeleza e pureza de coração, perguntou a Marta se ela achava que estava grávida devido ao beijo que lhe roubara na mesma tarde, ainda por cima, beijo nas róseas bochechas da donzela. Marta lhe respondeu sem demora: ora, é claro que fiquei grávida por conta do seu beijo roubado. Todos caíram em risos compreendendo a confusão que a ingenuidade das moças causara.
O casamento foi adiado e terminou por acontecer nos primórdios da década de 1950, junto com o governo de Juscelino, filho honorário da terra. Desse beijo roubado (e do casamento) resultou o surgimento de uma grande e frutífera família. Aquela Belo Horizonte ingênua e romântica não existe mais, mas sempre será lembrada pelos seus causos e por suas histórias de amor.

Dedicado a Vó Marta e Vô Willer que me contam essa história (cada dia com mais riqueza de detalhes e com brilho saudosista nos olhos) a mais de vinte anos na mesa de café e da qual eu nunca me canso de escutar. Dedicado também a 'dinha' Mercês por nunca deixar de contar suas memórias e reminiscências

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