quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Minas Enigma

Fernando Sabino
Minas além do som, Minas Gerais.
(Carlos Drummond de Andrade)

Se sou mineiro? Bem, é conforme, dona. (Sei lá por que ela está perguntando?) Sou de Belzonte, uai.

Tudo é conforme. Basta nascer em Minas para ser mineiro? Que diabo é ser mineiro, afinal? Inglês misturado com oriental? É fumar cigarro de palha, como o poeta Emílio, de Dores do Indaiá? Autran fuma cachimbo. Tem até quem fume cigarro americano. (No bairro do Calafate havia uma fábrica de "Camel".) Em suma: ser mineiro é esperar pela cor da fumaça. É dormir no chão para não cair da cama. É plantar verde pra colher maduro. É não meter a mão em cumbuca. Não dar passo maior que as pernas. Não amarrar cachorro com lingüiça.

Porque mineiro não prega prego sem estopa. Mineiro não dá ponto sem nó. Mineiro não perde trem.

Mas compra bonde.

Compra. E vende pra paulista.

E vém mineiro. Ele não olha: espia. Não presta atenção: vigia só. Não conversa: confabula. Não combina: conspira. Não se vinga: espera. Faz parte do decálogo, que alguém já elaborou. E não enlouquece: piora. Ou declara, conforme manda a delicadeza. No mais, é confiar desconfiando. Dois é bom, três é comício. Devagar que eu tenho pressa.

Apólogo mineiro: o boi velho e o boi jovem, no alto do morro — lá embaixo uma porção de vacas pastando. O boizinho, incontido:

— Vamos descer correndo, correndo e pegar umas dez?

E o boizão, tranqüilamente:

— Não: vamos descer devagar, e pegar todas.

Mais vale um pássaro na mão. A Academia Mineira, há tempos, pagava um jeton ridículo: duzentos cruzeiros — antigos, é lógico. Um dos imortais, indignado, discursava o seu protesto:

— Precisamos dar um jeito nisso! Duzentos cruzeiros é uma vergonha! Ou quinhentos cruzeiros, ou nada!

Ao que um colega prudentemente aparteou:

— Pera lá: ou quinhentos cruzeiros, ou duzentos mesmo.

Quem nasce em Três Corações é tricordiano — haja vista Pelé. Quem nasce em Barbacena tem de escolher a Maternidade: ou é do Zezinho ou do Bias. E a Manchester Mineira, terra do Murilo Mendes? O poeta Nava foi-se embora: "parabéns a Pedro Nava, parabéns a Juiz de Fora". Itabira, calçada de ferro: não aceitou chamar-se Presidente Vargas, continuou digna do itabirano Carlos. E Ouro Preto continua digna de ser vista: ali é a casa do Rodrigo; Renato de Lima, ex-delegado e pianista amador, pintando junto à Casa dos Contos. Afonso é de Paracatu. Em Sabará nasceram Lúcia e Aníbal, além de outros ilustres Machados. Alphonsus, o solitário de Mariana. Os profetas de Congonhas. A cidade de Tiradentes — o que não tinha barbas. O Aleijadinho não tinha mãos. São João del Rei, onde nasceu Otto, o que morrerá batendo papo. Solidário só no câncer? Absolutamente, dona: nas virtudes também, uai. Haja vista a Tradicional Família Mineira, que Deus a tenha. As estações de águas: lembrança de São Lourenço, escrito num copinho. E Lambari, terra de Henriqueta! Monte Santo tem a rua mais iluminada do mundo. E uma ambulância com sirene, que seu filho Castejon arranjou. Itaúna fica num quarto andar do Leblon, no apartamento de Marco Aurélio, o bom. Jeremias, outro bom, mineiro como Ziraldo. Os bonecos de Borjalo só ganharam boca depois que começaram a falar. Mineiro por todo lado! O poeta Pellegrino, como psiquiatra, tem garantida uma numerosa clientela. Amílcar modela Minas em arame. Paulo encontrou Minas depois que saiu de lá. João Leite levou-a para São Paulo, Alphonsus para Brasília, Guilhermino para o Sul. João Camilo ficou. Etiene voltou. Paulo Lima voltou. Iglezias voltou. Jaques voltou.Figueiró continua, Rubião recomeçou.

Um Estado de nariz imenso, um estado de espírito: um jeito de ser. Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — prudência e capitalização.

O guarda-chuva da proteção financeira, não como lema do Banco do Magalhães mais o Zé Luís, e sim como regra de conduta:

— Meu filho, ouça bem o seu pai: se sair à rua, leve o guarda-chuva, mas não leve dinheiro. Se levar, não entre em lugar nenhum. Se entrar, não faça despesas. Se fizer, não puxe a carteira. Se puxar, não pague. Se pagar, pague somente a sua.

Mas todos os princípios se desmoronam diante de um lombo de porco com rodelas de limão, tutu de feijão com torresmos, lingüiça frita com farofa. De sobremesa, goiabada cascão com queijo palmira. Depois, cafezinho requentado com requeijão. Aceita um pão de queijo? biscoito polvilho? brevidade? ou quem sabe uma broinha de fubá? Não, dona, obrigado. As quitandas me apertencem, mas prefiro bolinho de januária, e pronto: estou sastifeito...

É a hora e a vez de Guimarães Rosa sorrir e dizer pra cumpadre meu Quelemén: perigoso nada, mira e veja, nas Gerais, essas coisas...

Falar de Minas, trem danado, sô. É falar no mundo misterioso de Lúcio Cardoso, Cornélio Pena ou Rosário Fusco, no mundo irônico, esquivo ou pitoresco de Cyro dos Anjos, Oswaldo Alves, Mário Palmério, seus romancistas. E num mundo de gente, seus personagens, que vão de Antônio Carlos a Milton Campos, de Bernardes a Juscelino — vasto mundo! ah, se eu me chamasse Raimundo. Dentro de mim uma corrente de nomes e evocações antigas, fluindo como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais. Leopoldina, doce de manga, terra de meus pais... Prefiro estancá-las no tempo, a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços, e que aos poucos descobririam o que resta de precioso em mim — o mistério da minha terra, desafiando-me como a esfinge com o seu enigma: decifra-me , ou devoro-te.

Prefiro ser devorado.

Chuvas

Em Minas Gerais chove:
Helicópteros com cocaína,
viadutos e lama tóxica.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Racista Adversativo

Se fosse possível classificar
nossos preconceitos cotidianos,
tal qual a boa gramática,
com análise morfológica e sintática,
surgiriam tipos bem característicos
de racistas.

O racista substantivo é aquele que dá
nome. Humilha, achincalha, despreza.

O racista adjetivo é o que atribui qualidades
(quase sempre negativas).

Um tipo especialmente perigoso de
racista é o racista verbo. Pratica as
mais vis e desumanas ações. Espanca,
agride, violenta.

Por outro lado temos o racista sujeito simples.
Ele comete suas injúrias sozinho.
As vezes se torna composto, quando se
alia à outros como ele.

Algumas vezes ele é um racista oculto.
Passa despercebido, mas a verdade é que ele está lá.

O racista predicado é o que afirma que
só está sendo o alvo de uma ação e está
respondendo a altura.

O racista advérbio é uma espécie de
pregador do preconceito. Tenta converter
e modificar os que estão a sua volta.

O meu racista gramatical preferido é o racista adversativo.
Ele jura que não é racista, até diz que tem amigos
ou um pé em algum lugar.
Ele faz questão de afirmar em alto e bom som
que não é racista, só para depois dizer:

mas,
porém,
todavia,
contudo,
entretanto,
no entanto,
não obstante,

e esbanjar triunfantemente todo o racismo a que tem direito.

E se tornar um racista superlativo.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Inocências perdidas

Uma menina na Síria, em um campo
de refugiados, confundiu uma câmera
com uma arma e se rendeu.

O mundo inteiro se comoveu
com tão triste cena.  

Disseram que uma criança não
deveria ter sua infância destruída
daquela maneira.

Naquele mesmo instante,
um menino negro, em uma favela
no Brasil, confundiu uma arma
com uma câmera e sorriu.

Levou um tiro de "12" e morreu.

Quase ninguém se importou com
assassinato tão covarde e brutal.

Na semana seguinte, disseram que
uma criança deveria ser julgada e
condenada como um adulto. 

sábado, 28 de março de 2015

À segunda vista

Quando a noite escura em mim se abateu
e a esperança da paixão se desfez.
Sensação de que tudo se perdeu
boa intenção transformada em insensatez.

Mas meus olhos pousaram sobre os teus
descobriram a beleza e a candura.
De alegria, o meu mundo se encheu,
sentimento de afeto e de ternura.

Seu sorriso trouxe de volta a paz,
resposta que somente o tempo traz.
De repente, de súbito ocorreu,

à primeira vista, a amizade nasceu,
levou embora o pranto, o medo, a dor.
À segunda vista, encontrei o amor.